Qual o preço da Liberdade?

8 / 04 / 2025
Notícia

Preparativos para a COP30 ignoram direitos de comunidades quilombolas e aprofundam padrão de urbanização racista no Pará

“A liberdade é o futuro que eles dizem que é bom, não sei pra quem. Para nós e para os animais é que não é”, afirma Santana Barbosa, quilombola e liderança do Quilombo do Abacatal, em Ananindeua, Pará. 

A liberdade à qual dona Santana se refere é o projeto de construção da Avenida Liberdade, na Grande Belém, no Pará. A via é uma das apostas do governador do Estado do Pará, Helder Barbalho (MDB), para resolver problemas de infraestrutura e tráfego na cidade que sediará a Conferência das Partes (COP30), em 2025.

A previsão é que o projeto seja implantado a cerca de um quilômetro de Abacatal, cortando a via de acesso ao quilombo. Os moradores afirmam que o parecer técnico não considerou o protocolo de consulta da comunidade.

A construção da via colide com os direitos de preservação da sociobiodiversidade local e, para dona Santana Barbosa, mesmo com a promessa de um trajeto mais curto, de apenas 13 minutos, a preocupação com o desmatamento e a fragmentação de habitats é crescente. 

“A rodovia passa onde era o berçário dos animais. A alça viária foi construída, nós estávamos lá na Audiência Pública, no telão lindo e maravilhoso, uma ponte para preguiça, para o macaco, um túnel para os animais. Eu disse: ‘Mas vocês ensinaram esses animais por onde que eles têm que passar?’. Vocês colocaram uma placa e disseram ‘olha, leiam aqui!’. Não falaram porque eles não ouvem, não falam. E a gente vê o tanto de animal morto nessa alça viária, e a mesma coisa será aqui na Liberdade, até porque ela vai ser expressa”, explica a liderança. 

A obra também irá atravessar uma Área de Proteção Ambiental (APA), isolando o Parque Estadual do Utinga, onde estão os últimos remanescentes de vegetação nativa da região metropolitana. A área protege os mananciais que abastecem a cidade e reúne mais de 1000 espécies de fauna e flora. 

A grande questão é que o isolamento de áreas naturais urbanas desencadeia um processo de fragmentação ambiental, com consequências drásticas para a região. Esses impactos já vêm sendo percebidos pela população de Abacatal. 

Maria do Remédio Cardoso é quilombola, pedagoga e coordenadora da Associação dos Moradores e Produtores de Abacatal Aurá. Ela conta que, no início da construção, o desmatamento os fez perceber que os animais estavam muito próximos da comunidade. “Nós nunca tínhamos tido uma quantidade de macacos tão grande. Como foi que nós percebemos? Tem o ingá, que é uma frutinha que macaco gosta, caju. Esse ano, os macacos invadiram a comunidade literalmente, e não sobrou nada”, afirma a coordenadora. 

Os macacos, desalojados por causa das obras, encontraram nas plantações do quilombo a única fonte de alimento disponível. A população relata que os animais estão consumindo os frutos ainda imaturos, o que vem impactando na produção. 

Clarice Seabra da Silva é graduanda em Direito e foi aluna do Curso de Combate ao Racismo Ambiental, do Instituto de Referência Negra Peregum. A estudante nasceu no Quilombo do Abacatal, mas, atualmente, mora em uma comunidade ribeirinha que também vem sendo afetada pela obra. 

“A construção da avenida sujou a água do igarapé que nós usamos. Ficou só barro por causa das máquinas. Ela falou dos animais e, realmente, lá em casa, é área de várzea. A gente tem como produto cacau, açaí e pupunha. E eles estão realmente atacando. Estão comendo toda a produção de venda”, conta a estudante. 

Clarice denuncia que o igarapé de sua comunidade, já contaminado pelo lixão Santana do Aurá, sofre agora um duplo impacto com a construção da rodovia. Segundo a estudante, o estudo realizado para implementação do projeto ignorou os impactos que a rodovia causaria no igarapé pela presente contaminação do lixão, subestimando os danos ambientais e sociais causados por essa dupla agressão. “Mesmo com isso acontecendo, no inverno amazônico, ainda tem bastante peixe e muitos ribeirinhos próximos usam o igarapé para tomar banho, lavar roupa, pegar camarão e pescar”, conclui. 

A instalação do lixão na beira do igarapé é um dos muitos casos de racismo ambiental vivenciados pelas comunidades quilombolas e ribeirinhas do Pará, que agora se somam com a construção da rodovia. 

Maíra Silva, bióloga e coordenadora de Combate ao Racismo Ambiental, do Instituto de Referência Negra Peregum, explica como se dão os impactos produzidos pela negligência nas consultas e processos realizados até então. “A obra poderá criar uma série de impactos que já estão sendo descritos pelos moradores de Abacatal. Os impactos gerados podem ser classificados como cumulativos e sinérgicos, considerados extremamente graves para esse quilombo que, historicamente, vem observando a urbanização se aproximar da comunidade, uma vez que a Área de Proteção Ambiental é essencial para o equilíbrio da biodiversidade local e o modo de vida do quilombo. Isso significa que, com a abertura da rodovia, é possível ter a perda da vegetação nativa, essencial para nichos ecológicos da vida silvestre, bem como perda das próprias espécies de animais e, consequentemente, da paisagem, criando um impacto cumulativo”, explica a coordenadora. 

Maíra destaca a ressalva feita por Dona Santana durante a audiência pública sobre as estratégias de mitigação descritas no projeto, como, por exemplo, a criação dos corredores ecológicos para travessia dos animais que não serão suficientes para a travessia das espécies, podendo ocasionar acidentes na via. “Destacando que, por mais que existam ações de mitigação, os impactos da obra serão inevitáveis. Também é possível observar a importância da APA como zona de amortecimento de dois aterros sanitários, o Santana do Aurá, localizado em Ananindeua, e o aterro sanitário de Marituba, município vizinho. Esses aterros foram colocados pelas comunidades como dois vizinhos que trazem grande preocupação com relação ao ecossistema aquático, uma vez que um deles apresenta potencial de contaminação nos igarapés que cortam o quilombo. Nesse caso, o desmatamento da APA pode potencializar ainda mais os impactos sofridos pelo aterro, principalmente no que os moradores relatam sobre o aumento do mau cheiro, pois a APA servia como barreira física de proteção, que é a própria floresta, caracterizando um impacto sinérgico”, conclui Maíra Silva.

AUDIÊNCIA PÚBLICA 

Maria do Remédio Cardoso afirma que as primeiras disputas surgiram nas audiências públicas, pois, segundo a coordenadora da associação, todo o conjunto de comunidades afetadas pela avenida foi excluído do processo. Apenas o Quilombo de Abacatal foi convidado, em virtude de ser a única comunidade com um instrumento legal de consulta prévia. 

Dessa forma, a comunidade encontra respaldo na Convenção 169 da OIT, que assegura o direito à consulta prévia, livre e transparente sempre que qualquer empreendimento possa impactar seus membros, independentemente de ser de iniciativa pública ou privada.

Segundo a liderança, a primeira audiência, realizada no auditório de uma universidade privada da região, foi marcada por uma série de imprevistos, incluindo uma abrupta falta de energia elétrica. A despeito disso, secretarias do governo demonstraram pressa em encerrar a discussão prematuramente. “Foi uma confusão, nós não permitimos. Eles tiveram que reagendar a audiência pública”, afirma Maria do Socorro. 

Na segunda audiência, as outras comunidades impactadas pelo projeto foram convidadas a participar. No entanto, algumas delas se adiantaram e negociaram compensações diretamente com as secretarias antes mesmo de Abacatal. Com a pressão, o Estado se viu na obrigação de realizar o Estudo de Componente Quilombola (ECQ).

Maria do Remédio destaca uma contradição no processo: enquanto o Estudo de Componente Quilombola é concebido como uma iniciativa da comunidade, na prática, é realizado por uma empresa contratada pelo Estado. “É um documento feito por nós, nós colocamos todas aquelas informações lá dentro. Por isso que nós aprovamos. Porque nós relatamos ali tudo de ruim que a avenida vai trazer para nós. Mas, na prática, é um documento do Estado”, afirma.

A liderança relata que a comunidade foi pressionada a tomar uma decisão rápida. Enquanto outras comunidades já haviam negociado suas compensações, Abacatal ficou isolada e, sob pressão, aprovou o Estudo de Componente Quilombola e uma lista de compensações.

“Para liberar a licença prévia, para começar as obras, eles aprovaram algumas compensações, algumas coisas que nós pedimos. Nós fizemos várias reuniões na comunidade, sentamos com os quilombolas e falamos. Infelizmente, o Estado se nega a fazer a consulta de forma correta, com a construção do ECQ e do PBAQ (Programa Básico Ambiental Quilombola) e o passo a passo respeitando o protocolo, que diz que as comunidades têm que ser consultadas dentro das suas possibilidades.  Nada com pressa”, lamenta Maria do Remédio. 

Ao que tudo indica, mesmo que o Estado reconheça a existência da Convenção 169, não demonstra um compromisso real com sua implementação. Diante da resistência, a comunidade de Abacatal foi pressionada a aceitar um acordo que, embora contemple algumas compensações, não mitiga os impactos causados pela construção da via. 

As compensações e mitigações concedidas são dever constitucional do Estado. Que só não contemplam Abacatal, em razão do racismo ambiental, que culmina na falta de reconhecimento por parte do poder público, e na precariedade das condições de vida da população, e esse foi o principal motivo que os levou a exigir compensações coletivas, já que as políticas públicas direcionadas para quilombolas são praticamente inexistentes. 

“Todas as compensações e mitigações vão ser benefícios da comunidade. Não tem valor monetário, tem valor para os moradores. Todas as compensações que nós sugerimos no Programa Básico Ambiental Quilombola, são coletivas. Praça, porque as nossas políticas públicas são péssimas. A Prefeitura não nos reconhece como quilombolas, e nós não temos infraestrutura nenhuma. Nós temos a escola e uma sala que funciona um postinho de saúde improvisado”, pontua a coordenadora. 

O PARADOXO 

É possível construir um futuro sustentável sem garantir a justiça climática para todos? A COP 30 em Belém nos coloca diante desse dilema. A cidade que sediará o maior evento sobre o clima no mundo está cometendo uma injustiça ambiental contra uma comunidade quilombola que protege seu território há três séculos. 

Da mesma forma, enquanto acontecem os preparativos para este megaevento, a população urbana de Belém enfrenta desafios básicos como moradia inadequada, infraestrutura precária e falta de saneamento básico.

Com mais de 54% da população vivendo em áreas de risco, segundo o Censo de 2022 e apenas 17% acessando o saneamento básico, Belém revela um contraste alarmante entre a expectativa de um evento global sobre mudanças climáticas e a realidade de seus habitantes.

O paradoxo é evidente. A cidade que se prepara para liderar a discussão sobre o futuro do planeta, enfrenta um presente marcado por desigualdades e pela insuficiência do Estado em grande parte do seu território, principalmente, onde vivem as populações negras, quilombolas, indígenas e ribeirinhas. 

E isso se reflete em âmbito nacional, a disparidade de infraestrutura entre o Norte e o Sul do Brasil é um sintoma claro do racismo ambiental que permeia nossa sociedade.

O país precisa conciliar a ambição de ser um modelo de sustentabilidade com a necessidade de garantir o bem-estar de sua população, sobretudo das populações negras, tradicionais e indígenas que juntas somam a maioria populacional. 

Segundo Zélia Amador, uma das fudadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, uma negociação climática global dentro da amazônia paraense, deve ser feita com a ampla participação das comunidades tradicionais e demais setores da sociedade civil. “A COP não pode ser um acerto das elites, ela tem que mobilizar a sociedade, sobretudos os grupos que são vítimas cotidianas do racismo ambiental, e eu espero que ao mobilizar essa população, eles se comprometam em reparar os danos que essa população tem sofrido ao longo do tempo por causa do racismo ambiental”, afirma. 

Para a co-fundadora do CEDENPA a palavra chave para a COP 30 no Brasil é reparação. E que a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima considere, acima de tudo, a garantia dos direitos humanos, a segurança e a promoção do bem-estar das populações que vivem e protegem territórios preservados.

HISTÓRICO 

A urbanização brasileira é marcada por um modelo racista e excludente que, historicamente, tem negligenciado comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Por séculos, tais comunidades foram vistas como obstáculos ao desenvolvimento urbano, e suas populações foram submetidas a processos de expulsão e desterritorialização.

Maria do Remédio conta que, no ano de 2017, Abacatal lançou um Protocolo de Consulta Prévia, foi a partir dessa pesquisa que o termo ficou conhecido entre a população do quilombo. Foi também, a partir da construção do protocolo, que a comunidade passou a nomear as violências presenciadas no território.

“O racismo ambiental contra a comunidade começou com a retirada de material arenoso, para aterrar a cidade de Belém, que era uma área alagada, todo o material que aterrou Belém foi tirado daqui. No período de retirada, dos curvões, nós não tínhamos estrada, seis meses do inverno amazônico era só lama, nós tínhamos que fazer caminhos por cima da estrada para poder sair daqui e levar nossos filhos para a escola, para o médico, os outros seis meses era poeira, por conta das caçambas que rodavam na estrada e os donos dos terrenos nunca fizeram nada”, relembra a coordenadora da associação do Abacatal. 

Maria conta que, por volta do ano de 2013, a comunidade entrou junto ao Ministério Público, com um pedido de fechamento desses terrenos, até que conseguiram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para viabilizar a estrada para a comunidade o ano todo. “Ainda assim não tivemos a estrada, tivemos em parte porque, durante o ano, a gente consegue ir e voltar, porém, nunca o Estado olhou e disse: ‘nós vamos arrumar a estrada de vocês, fazer uma terraplanagem’, como eles chamam. Mas pelo menos a gente tinha uma estrada pra ir e vir”, explica. 

Em comunidades como Abacatal, a restrição à mobilidade, o isolamento territorial e a falta de acesso a serviços básicos são marcas do racismo ambiental, que nega o acesso à cidadania plena

A coordenadora da Associação, Maria do Remédio, conta como tem sido a dinâmica das grandes obras no entorno da comunidade. “O primeiro foi o lixão do município de Marituba instalado às margens da cabeceira do igarapé Uriboquinha. A meio quilômetro da nascente do igarapé, foi instalado o aterro sanitário. Agora esse foi o mais grave porque nos levantamentos para licença prévia, Abacatal não apareceu, sendo que estamos a 1 km da extremidade do nosso terreno até a alça viária, e nesses estudos, a comunidade não apareceu”, pontua.  

É nesse sentido, que a Rodovia Liberdade representa a repetição de um modelo de urbanização racista e excludente, que ignora a realidade das comunidades tradicionais e aprofunda as desigualdades sociais e ambientais, demonstrando um descaso do poder público com os povos tradicionais. 

A RODOVIA

A Rodovia Liberdade é uma via expressa de 13,3 quilômetros, com início próximo à Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e término no entroncamento com a Rodovia Alça Viária, em Marituba.  

O projeto prevê que a construção, denominada PA-020 ou Avenida Liberdade, atravessará a Área de Proteção Ambiental (APA) Metropolitana de Belém, abrangendo três rios: Murutucu, Aurá e o igarapé Pau Grande, que são afluentes do rio Guamá.  

Segundo o estudo de impacto ambiental do projeto, a rodovia estará a 500 metros do Parque Estadual do Utinga, uma das poucas áreas verdes de Belém. A APA Metropolitana de Belém, criada em 1993, abrange 7.500 hectares e inclui os municípios de Belém e Ananindeua. Dentro dessa área, encontra-se o sítio arqueológico do Engenho do Murutucu.  

A execução do empreendimento foi autorizada com a licença ambiental emitida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas). A gestão da APA é responsabilidade do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio), vinculado ao governo estadual.

texto| Mayara Nunes

reportagem| Mayara Nunes e Caio Chagas