Na penúltima quinta-feira de agosto (24/8), foi realizada a Jornada dos Movimentos Negros Contra a Violência Policial, com atos organizados em todo o Brasil através da articulação de lideranças negras. Foram 30 cidades e 25 estados, levando o povo para a rua “Pelo fim da violência policial e por justiça por Mãe Bernadete Pacífico: Nossas crianças e o povo negro querem viver!”.
Nos últimos dias, temos enfrentado situações de violência ostensiva contra a população negra. São diversas as formas do racismo operar. As forças armadas do Estado ceifaram dezenas de vidas na cidade do Guarujá, em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia. Entre 31 de julho e 28 de agosto de 2023, a ação desproporcional da polícia assassinou duas crianças e um adolescente. Thiago Menezes Flausino (13 anos), Eloah Passos (5 anos) e Bryan Silva Ferreira dos Santos (16 anos).
O extermínio da população negra é um projeto político no Brasil. No dia 17 de agosto, o racismo religioso e a violência contra a população negra quilombola levou a vida de Mãe Bernadete Pacífico, ialorixá e liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho-BA. Mãe Bernadete, de 72 anos, foi brutalmente executada dentro de sua casa, em frente aos seus netos.
A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia era responsável por fazer a segurança da ialorixá, com câmeras e rondas. A liderança já havia feito alerta às autoridades sobre a violência vivenciada no Quilombo. Em julho, durante visita da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber, a líder quilombola relatou que a comunidade vinha sofrendo ameaças, principalmente de fazendeiros e que sua casa estava sendo vigiada por terceiros. Mas o Estado negligenciou cada um de seus pedidos de proteção.
“A indicação de uma ministra negra ao Supremo Tribunal Federal se tornou mais que uma necessidade, é crucial como mecanismo de defesa institucional de nossas vidas, assim como mais mulheres negras e homens negros na procuradoria e nos tribunais superiores. As operações policiais dos últimos dias escancaram isso. Não são casos isolados. Nosso povo vem sofrendo violações específicas e cotidianas em suas comunidades, territórios e terreiros, necessitando de uma representação em instâncias superiores que sejam comprometidas com as demandas do nosso povo, em um contraponto ao olhar universalista da branquitude”, afirma Vanessa Nascimento, presidenta do Instituto de Referência Negra Peregum.
Perspectiva
As instituições policiais têm sido objeto crescente de preocupações por razões relacionadas às dificuldades em se desenvolver mecanismos eficazes de controle da sua atividade. Ao longo dos últimos anos, aumentou a percepção de que a atuação policial é pouco eficaz no combate ao crime e que medidas de desenvolvimento social e cultural, geração de emprego e renda e redução de danos têm se mostrado realmente efetivas no combate à criminalidade.
No dia 15 de agosto, a coordenadora de Incidência Política e Litigância Estratégica do Instituto Peregum, Ágatha de Miranda, participou de uma mesa proposta pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito (NJRD), da FGV Direito SP, sobre a atuação das polícias e o autoritarismo, tema que é objeto de diferentes pesquisas desenvolvidas pelo NJRD.
O encontro contou com a participação da professora assistente de Políticas Públicas na Harvard Kennedy School, Yanilda María González. Autora do livro “Authoritarian Police in Democracy: Contested Security in Latin America” (Cambridge University Press, 2020), a professora estuda a persistência das forças policiais como enclaves autoritários em estados democráticos, demonstrando como a política democrática comum em sociedades desiguais pode reproduzir o policiamento autoritário e provocar raros momentos de reformas expansivas.
Yanilda é natural da República Dominicana, mas cresceu nos Estados Unidos, em Nova York, uma cidade que tem um histórico de violência policial sistemática, tal como o Brasil, principalmente contra pessoas negras e imigrantes latinos.
Para a pesquisadora, a violência policial direcionada a grupos com recortes de gênero, raça e classe é um problema global. “Eu acho que é importante colocar o que estamos observando aqui agora, no estado de São Paulo, na Bahia, no Rio de Janeiro, em perspectiva comparada, e pensarmos juntos essa questão de que realmente a violência policial é um problema global e as demandas por uma reforma policial, por uma mudança nessa atuação policial que observamos com tanta regularidade, é uma questão global também”, afirma Yanilda González.
Durante o seminário, a professora trouxe ao público a definição do Estado, que tem em uma de suas características fundamentais a violência e o uso da força. Yanilda explica que o uso da força legítima é um “Conditio sine qua non”, condição sem a qual o Estado não funciona, ou seja, o Estado dá à polícia a legitimidade para agir de uma forma violenta.
“O fato da polícia ter essa autoridade, essa legitimidade para agir de forma violenta em nome do Estado, e não só do Estado, numa sociedade democrática, em nome da sociedade, isso dá para a polícia o que eu chamo de um enorme poder estrutural que ajuda a entender como chegamos a observar os problemas que estamos vendo. A polícia exerce esse poder estrutural para obter concessões dos governantes e para restringir as possibilidades das agendas das políticas públicas”, explica.
Segundo a pesquisadora, a polícia é uma ferramenta política muito poderosa e, por exercer o monopólio da força, acaba exercendo o monopólio da violência legítima em nome do Estado. E, se há interesse político, essa ferramenta termina sendo determinante se aliada com outras ferramentas como, por exemplo, a mídia, a cultura hegemônica e sua narrativa estruturalmente racista que coloca toda e qualquer pessoa racializada como potencial suspeito.
Em entrevista, no dia 31 de julho, logo após a repercussão das mortes na baixada santista, o governador Tarcísio de Freitas alegou que estava “extremamente satisfeito” com a atuação da polícia no Guarujá, e disse que as denúncias de tortura e chacina são “narrativas”.
“Temos vários exemplos como esse, porque essas operações estão servindo os interesses políticos do governador e ele está usando essas operações de maneira política. De forma bastante explícita, a frase dele, de que está extremamente satisfeito com essas operações, acho que já dá para entender o caráter político dessas operações e que realmente não estão respondendo a uma necessidade em relação à segurança pública”, pontua Yanilda.
Recriando o futuro
A pesquisa “Percepções sobre o racismo no Brasil”, encomendada pelo Instituto de Referência Negra Peregum e Projeto Seta e realizada pelo IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), trouxe em seus indicadores dados sobre a percepção da população brasileira diante da violência policial. 63% da população pesquisada em 127 municípios, nas cinco regiões do país, concorda que a abordagem policial no Brasil é baseada na cor da pele, tipo de cabelo e vestimenta e 71% das pessoas concordam totalmente que pessoas brancas e pessoas negras são tratadas de forma diferente pelas polícias.
Uma das discussões em torno do sistema de segurança pública é a desmilitarização, o que não implicaria no fim das polícias, mas em transformá-las em uma instituição civil, permitindo que seus membros possuam os mesmos direitos e deveres inerentes ao restante da população. Atualmente, a polícia militar é vinculada ao exército, o militarismo em seu interior vem se demonstrando equivocado e obsoleto, principalmente, depois da retomada do Estado Democrático de Direito, em 1984.
A coordenadora de Incidência Política e Litigância Estratégica do Instituto de Referência Negra Peregum, Ágatha de Miranda, aponta a desmilitarização como uma perspectiva de futuro para a segurança pública e, principalmente, para a vida da população negra.
“Um tema bastante forte no campo da Segurança Pública é a militarização da polícia no Brasil que, sim, guarda a sanha autoritária característica das instituições ditatoriais, mas que, sobretudo, corresponde a uma organização/modo de ser configurado à perseguição e extermínio do corpo negro. Nesse sentido, a desmilitarização da polícia é um passo importante sobre uma nova política de segurança pública, que tenha capacidade de garantir o direito de ir e vir, à vida, à dignidade”, conclui a coordenadora.
Texto| Mayara Nunes