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O fundamentalismo que promove racismo religioso e transforma uma escola de educação infantil em um território inimigo do estado de São Paulo

28 / 11 / 2025

No último dia 11 de novembro, o pai de uma criança regularmente matriculada na EMEI Antonio Bento, no bairro do Caxingui, distrito do Butantã, na cidade de São Paulo, ao buscar sua filha no horário da saída, percebeu que ela levava para casa a ilustração da Orixá Iansã que havia sido desenvolvida em uma atividade durante o período de aula.

O pai da criança, sargento da polícia militar, retornou à escola no mesmo dia para tomar satisfação com a educadora responsável pela turma de sua filha. Ao questionar os motivos pelos quais ela havia apresentado para a turma, nos termos do referido pai, temáticas vinculadas à Umbanda, rasgou o desenho da própria filha na frente das demais crianças. A professora, sentindo-se ameaçada, solicitou a presença da diretora da unidade escolar, a professora Aline Aparecida Floriano Nogueira, para que ambas pudessem explicar ao pai os objetivos da atividade pedagógica desenvolvida.

A diretora da escola, Aline Nogueira, explicou que a atividade desenvolvida pela professora foi a leitura do livro “Ciranda em Aruanda”, de autoria de Liu Olivina, cuja intenção foi introduzir as crianças ao universo das mitologias afro-brasileiras e, portanto, dos Orixás; que a atividade se inscrevia entre outras desenvolvidas pela unidade, cujo objetivo era ensinar sobre as contribuições da população negra para a sociedade brasileira com a finalidade de formação de cidadãos antirracistas. Tudo isso amparado pelo que se denomina Educação para as Relações Étnico-Raciais.

Compreendendo que o pai da criança permanecia insatisfeito com as explicações, a diretora da escola orientou o mesmo que formalizasse sua insatisfação ao Conselho de Escola que se reuniria no dia seguinte. Entretanto, no dia 12 de novembro, quatro policiais militares armados, um deles portando uma metralhadora, invadiram a escola sob a justificativa de terem recebido denúncia de que a instituição estava constrangendo as crianças por meio da prática do ensino religioso.

É preliminar dizer que o artigo 26-A da LDB 9394/96, alterado pela Lei 10.639/03, assegura a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todos os estabelecimentos de ensino. Dessa forma, as temáticas constituidoras do universo da cultura afro-brasileira devem se fazer presentes no cotidiano das escolas brasileiras. Sendo assim, as mitologias, lendas e histórias dos Encantados, Voduns e Orixás, em suas respectivas expressões narrativas, participam do vernáculo nacional e, portanto, devem figurar nos projetos, sequências e atividades didáticas das escolas brasileiras.

Cabe reiterar que, via de regra, as unidades educacionais que reservam em seus projetos políticos-pedagógicos estratégias diversificadas de ações no sentido de garantir o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana também estão amparadas no artigo 3º da LDB, quando delimitam os princípios e fins da educação nacional, apontando, entre outros elementos, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pluralismo de ideias, o respeito à liberdade e apreço à tolerância e a gestão democrática do ensino público.

Observa-se que a professora Aline Nogueira, diretora da instituição escolar, mesmo amparada por sua condição profissional e pela farta legislação educacional, convidou o sargento para participar do Conselho de Escola, instância propulsora da gestão democrática na escola na medida em que se constitui com um órgão colegiado que reúne representantes das famílias, bebês/crianças e/ou estudantes, professores, funcionários e direção para promover gestão representativa do conjunto dos setores que constituem a unidade educacional.

O convite da diretora da escola ao pai da criança poderia ter sido recebido como uma oportunidade de diálogo, por exemplo, de como se definem os conteúdos e/ou direitos de aprendizagem que são ensinados na escola; de como se dão os processos de legitimação de determinados saberes para que eles estejam em sala de aula; ou de como as questões entendidas como mais delicadas precisam ser discutidas em coletivos representativos, orientados por legislações que delimitam as ações de uma unidade educacional. Talvez, pudesse ser entendido, também, como uma possibilidade de ampliação do letramento democrático em instituições públicas e em sociedades que ainda precisam aprofundar os sentidos da experiência democrática, como é o caso da sociedade brasileira.

Lamentavelmente, o que se sucedeu ao fato foi a invasão de uma escola de educação infantil em seu pleno funcionamento — com crianças de 4 e 5 anos em suas respectivas atividades didáticas garantidas por lei — realizada por quatro policiais militares altamente armados, em horário de serviço, sem justificativa legal. Daí, o que se pode interpretar, mais uma vez, é a expressão clássica de como as forças policiais do Estado brasileiro, no caso de São Paulo, compreendem a cultura negra, bem como aqueles que a praticam, inclusive dentro de uma escola de educação infantil, isto é, como inimigos do Estado, e portanto, sujeitos a violações de direitos.

Nesta ação da Polícia Militar de São Paulo, é importante ressaltar isso, porque, se todos os policiais estavam em horário de serviço, devidamente uniformizados e armados, é porque passaram pela escola de formação de soldados, e mesmo assim, imbuídos de espírito fundamentalista promotor do racismo religioso e destruidor de democracias, fizeram da EMEI Antonio Bento um território inimigo, ameaçando crianças de 4 e 5 anos, porque não reconhecem que a escola cumpria o seu dever legal constitucional de promover a educação para as relações étnico-raciais.

Desta feita, o mínimo que se espera é a apuração rigorosa dos fatos, o esclarecimento público das circunstâncias da atuação policial e a garantia de que episódios como esse não voltem a ocorrer. Para além disso, se faz necessário o apoio institucional aos profissionais da educação da EMEI Antonio Bento por parte da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e o fortalecimento da educação para as relações étnico-raciais na cidade. Ademais, é urgente que a sociedade brasileira discuta, com seriedade e serenidade, o papel historicamente desempenhado pelas forças policiais — especialmente junto à população negra do país. Só assim será possível construir novos significados e formas de aprofundar os sentidos da democracia para o conjunto ampliado da população.

Artigo de Adriana Moreira, doutoranda em Educação – FE-USP e coordenadora de Educação do Instituto Peregum