Mayara Nunes
Visando aumentar a representatividade de pessoas negras e quilombolas na Advocacia Pública, o Instituto de Referência Negra Peregum, em parceria com a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Igualdade Racial, implementou, em 2024, o Programa Esperança Garcia.
A execução e o desenvolvimento do curso são inspirados no histórico de luta por educação popular da organização. Este programa de três anos já completa seu primeiro ano em 2025 e se destaca como uma iniciativa fundamental para promover a equidade racial e a inclusão interseccional nas carreiras jurídicas do setor público brasileiro.
Com uma metodologia inovadora desenvolvida pelo Instituto Peregum, o programa adota critérios interseccionais em seus processos seletivos e ações formativas, enfrentando desigualdades estruturais que historicamente limitaram o acesso da população negra a espaços de poder.
O Instituto Peregum tem desenvolvido critérios com base nessa perspectiva, com a expectativa de que se transformem em políticas públicas e sirvam de referência para outros programas e iniciativas. Dados recentes revelam como o Programa Esperança Garcia tem gerado impacto concreto na representatividade de grupos historicamente excluídos.
Eva Patricia Braga Fernandes, aluna do programa e membro de uma comunidade quilombola, personifica a importância do Programa Esperança Garcia na vida da população negra, sobretudo na vida das mulheres. Sua aprovação nos concursos do TRF2, TRF3 (para Técnico Judiciário em 2024 e para Polícia Judicial Federal) e TSE, demonstra o potencial transformador do programa.
“Esperançar, para mim, é agir. Essas aprovações, ainda que simples, provam que vale a pena continuar lutando, mesmo diante dos inúmeros problemas sociais que atingem a população negra. Costumo dizer aos meus colegas que nosso maior desafio é vencer a nós mesmos, superar as dificuldades financeiras e a sobrecarga da jornada, especialmente para as mulheres. Nunca existiu um programa como este, que promovesse o acesso da população negra ao estudo para concursos públicos”, explica a estudante.
Indicadores que demonstram diversidade e inclusão
O programa reúne 130 pessoas negras de todo o Brasil e oferece formação gratuita a todos os participantes, incluindo atividades voltadas à saúde mental. Entre eles, 30 estudantes, selecionados conforme critérios estabelecidos no edital, receberam bolsa de permanência no valor de R$ 3 mil, além de mentoria com servidores públicos e apoio psicológico individualizado.
Gênero
- Mulheres representam 69% das participantes do programa e correspondem a 70% das beneficiárias da bolsa permanência, evidenciando um avanço relevante frente à histórica sub-representação feminina nos altos cargos da administração pública, especialmente em áreas tradicionalmente desvinculadas do cuidado.
População quilombola
- Pessoas quilombolas representam 47,5% dos cursistas e 50% dos estudantes com bolsa permanência, evidenciando a intersecção entre raça e território e sinalizando uma inclusão qualificada desses grupos nos espaços institucionais.
Vulnerabilidade social e trabalho de cuidado
- O programa reconhece o impacto do trabalho de cuidado não remunerado, acolhendo candidaturas de pessoas responsáveis por crianças, idosos e pessoas com deficiência. Esse reconhecimento é crucial para ampliar o acesso de mulheres e demais cuidadores ao serviço público.
Pessoas com deficiência
- Pessoas com deficiência representam 9,2% dos participantes do programa. Para garantir uma inclusão plena, são disponibilizados recursos de acessibilidade, como materiais adaptados e acompanhamento pedagógico, além do compromisso contínuo com a ampliação dessas ferramentas
Diversidade etária
- 47% dos participantes têm mais de 40 anos — entre os bolsistas, esse percentual é de 46,9%. Esses dados desafiam estigmas etaristas e reafirmam o compromisso com a geração de oportunidades em todas as fases da vida.
Diversidade regional
- Entre os alunos do programa, 56% são das regiões Norte e Nordeste. Já entre as pessoas que recebem bolsa permanência, esse percentual é de 45,5%. Esses dados reafirmam a importância de descentralizar as políticas públicas e de reconhecer os talentos que emergem de territórios historicamente negligenciados.
Formação e acesso como instrumentos de reparação racial na advocacia pública
O acesso à educação sempre foi pauta central para o Movimento Negro Brasileiro. Durante muito tempo, a exclusão educacional refletiu diretamente na participação política e institucional da população negra como um todo. Até a emenda constitucional de 1985, o analfabetismo — concentrado majoritariamente entre a população negra tradicional, rural e periférica — impedia o exercício do direito ao voto, conforme estabelecia a legislação da época.
A exclusão da população negra do sistema educacional no Brasil foi uma realidade histórica que se manifestou por meio de leis e práticas discriminatórias. Somente com a Constituição de 1988 é que a população negra pôde exercer plenamente sua cidadania política, passando a participar do processo democrático e a escolher seus representantes. Esse marco foi fundamental para a conquista de outros direitos, inclusive o direito à educação.
Quarenta anos depois, políticas públicas como a Lei de Cotas e ações afirmativas possibilitaram avanços importantes: hoje, a população negra representa 50,3% dos estudantes do ensino superior no país, segundo a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça Brasil”. O direito ao voto, aliado à ocupação progressiva de espaços institucionais por representantes comprometidos com a luta antirracista, tem contribuído para ampliar o acesso a direitos fundamentais.
No entanto, a sub-representação nos espaços de poder ainda é uma realidade persistente e se revela de forma contundente nos cargos públicos. De acordo com o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apenas 1,7% dos juízes e juízas do país se autodeclaram pretos — um dado que evidencia a baixa representatividade racial no sistema de Justiça. No Poder Executivo Civil, em 2022, pessoas negras correspondiam a apenas 36% do total de servidores públicos, o que reforça a necessidade urgente de ampliar a diversidade no funcionalismo público.
Nesse contexto, o Instituto de Referência Negra Peregum atua na continuidade dessa luta por justiça racial, e uma de suas ações mais relevantes nesse sentido é o Programa Esperança Garcia, que tem como objetivo ampliar a presença de pessoas negras nas carreiras jurídicas por meio de concursos públicos, promovendo a equidade na advocacia pública e fortalecendo políticas afirmativas voltadas para a igualdade racial.
A ação inclui curso preparatório e bolsas-permanência, garantindo não só o acesso, mas também a permanência dos estudantes. O programa reforça o papel das ações afirmativas na superação das desigualdades históricas e na inserção da população negra em espaços institucionais.