Por Izabella Gomes*
Iniciamos o presente texto questionando a norma constitucional na perspectiva de sua eficácia: se existe uma norma constitucional impondo que seja destinado percentual determinado do financiamento das campanhas para as candidaturas negras, qual é o sentido de existir uma nova norma constitucional anistiando partidos políticos de sanção na hipótese de não cumprimento da destinação do financiamento? Ao interesse de quem atende a existência de uma norma tão avessa à principiologia constitucional?
A pergunta até mesmo parece retórica, mas não o é. Direitos constitucionais de candidaturas negras vêm sendo historicamente inobservados e, com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) 133 de 2024, oriunda da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 09 de 2023 da Câmara dos Deputados, estão sendo constitucionalmente vilipendiados.
A EC 133/2024 “altera a Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, quanto à aplicação de sanções aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições, bem como nas prestações de contas anuais e eleitorais”.
Tema oriundo das provocações da sociedade civil, em especial do movimento negro brasileiro, expressada na denúncia realizada em 2018 pelo então candidato a deputado federal Douglas Belchior e, sobretudo, de consulta pública da deputada federal Benedita da Silva ao Tribunal Superior Eleitoral no ano de 2020, o financiamento de campanha de candidaturas negras tem sido alvo de sistemático descumprimento.
E é nesse contexto que o Instituto de Referência Negra Peregum, no âmbito da Agenda Política Peregum – Eleições 2024, lançou o Manual de Orientações Jurídicas para Candidaturas Negras, visando tratar da distribuição proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), distribuição proporcional do tempo de propaganda eleitoral, a fiscalização sobre as autodeclarações raciais dos candidatos, mecanismos de denúncias das fraudes e outras regras gerais pertinentes às candidaturas negras. O objetivo desse Manual é ofertar elementos iniciais e subsidiar o acesso aos direitos dessas candidaturas tão caras ao movimento negro brasileiro.
A PEC 09 de 2023, resultante na EC 133/2024, instituiu o REFIS, refinanciamento da multa sancionatória por descumprimento por não aplicação dos recursos financeiros às candidaturas negras, e também a anistia a partidos políticos que, nas próximas quatro eleições, direcionarem recursos às candidaturas negras. Na prática, os partidos políticos que não observaram a lei foram perdoados desde que façam “a aplicação de recursos de qualquer valor em candidaturas de pessoas pretas e pardas (…)”, conforme artigo 3º da EC 133/2024. Salienta-se que o não estabelecimento de valor mínimo poderá levar, se cumprida tal estipulação, a aplicações irrisórias de recursos às candidaturas negras.
A EC 133/2024 inseriu o parágrafo 9º ao artigo 17 da Constituição Federal, impondo percentual de aplicação de 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário às candidaturas negras. Esse patamar é contraditório com o que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) referendaram desde 2020, que era a aplicação proporcional do Fundo Eleitoral.
A título elucidativo, o TSE estabeleceu na Resolução 23.664 de 2021 a proporção entre candidatos negros e não negros, determinando que o percentual de candidaturas negras seja calculado com base na relação entre essas e o total de candidatos, por sexo, dentro de cada partido em âmbito nacional. Essa decisão foi referendada pelo STF na ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 738.
Assim, o que há, hoje, na Constituição Federal é o decréscimo dos recursos aplicados às candidaturas negras, o qual anteriormente deveria ser proporcional ao número de tais candidaturas, o que já era descumprido pelos partidos políticos, haja vista a anistia trazida pelo diploma ora em debate e que, hoje, está fixado em 30%, contrariando conquistas históricas do movimento negro brasileiro e a jurisprudência ventilada pelos tribunais superiores.
Atualmente, no Supremo Tribunal Federal, foram manejadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), nº 7706 e nº 7707, propostas pela Rede Sustentabilidade e pela Federação Nacional das Associações Quilombolas (FENAQ) e pela Procuradoria-Geral da República, respectivamente.
Os autores da ADI 7706 requerem a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 1º, 2º, 3º, 7º e 9º, inciso I da EC 133/2024. Na ADI 7707, a Procuradoria-Geral da República requer cautelarmente a suspensão do artigo 9º, inciso I da EC 133/2024, para não aplicação na eleição 2024. A declaração de inconstitucionalidade do artigo 17, parágrafo 9º da Constituição Federal, sucessivamente, requer a declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º e 9º, inciso I da EC 133/2024. A ADI 7707 teve proferida decisão monocrática pelo ministro relator em 6 de setembro de 2024 em que não foi deferida a medida cautelar.
Ocorre que há flagrante violação ao artigo 16 da Constituição Federal, o qual consagra o princípio da anterioridade eleitoral, ou seja, no caso concreto, para que a EC 133/2024 seja aplicada, ela deve respeitar o prazo de um ano entre a sua entrada em vigência, 22 de agosto de 2024, e o pleito eleitoral, não sendo crível a sua aplicação nas eleições de 2024.
Com baixa aplicação de recursos, como é possível falar em aprimoramento das regras de financiamento eleitoral? Como as candidaturas negras devem fazer uma campanha eleitoral justa, com condições dignas de prestação de informações de suas propostas? É impossível extrair do texto da EC 133/2024 que houve aprimoramento nas regras de financiamento eleitoral. O que houve efetivamente foi o rompimento na igualdade de condições de participação das candidaturas negras no processo eleitoral pela fixação do patamar de 30% dos fundos eleitoral e partidário.
Não é possível apontar que não houve afetação ao sufrágio, direito público subjetivo dos cidadãos, na perspectiva de escolha dos seus representantes no pleito eleitoral. A partir do momento em que uma determinada parcela das candidaturas está sub-representada e com baixo acesso aos recursos financeiros, o conhecimento dos eleitores sobre a existência dessas candidaturas já se faz prejudicado, afetando o processo eleitoral em sua plenitude e impossibilitando tratar de igualdade de condições entre as candidaturas negras e não negras.
A contrario sensu, o que se subtrai da PEC 09/2023, promulgada como EC 133/2024, é que há flagrante violação ao princípio fundamental do pluralismo político, bem como inobservância aos objetivos desta República, a saber: não discriminação, construção de uma sociedade livre, justa e solidária e garantia do desenvolvimento nacional. Há um imenso retrocesso em curso no atual processo eleitoral.
Lamentavelmente, em meio ao maior fundo eleitoral da história do país, com disponibilização orçamentária de mais de quatro bilhões de reais, as candidaturas negras veem suprimidos seus direitos.
Izabella Gomes é supervisora pedagógica do Programa Esperança Garcia e integrante do advocacy do Instituto de Referência Negra Peregum