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NOTA SOBRE A VOTAÇÃO DA PEC 09/2023

11 / 07 / 2024
Hub Peregum

O INSTITUTO DE REFERÊNCIA NEGRA PEREGUM, organização sem fins lucrativos, criado por ativistas da luta por equidade e justiça racial e de gênero, que existe para promover a difusão da educação, da comunicação e dos direitos humanos, bem como a prestação de cuidados e assistência e o estímulo ao protagonismo da população negra no Brasil, suas organizações e lideranças da periferia, vem por meio desta, manifestar seu posicionamento CONTRÁRIO À PEC 09/2023, que anistia as irregularidades cometidas pelos partidos políticos nas eleições anteriores, inclusive a falta de repasses dos recursos devidos em campanhas de mulheres e de pessoas negras.

Entre outros despropósitos, a Proposta de Emenda à Constituição n.º 09/23, apresentada pelo Deputado Paulo Magalhães (PSD/BA) e outros, visa alterar a Emenda Constitucional n.º 117, de 5 de abril de 2022, quanto a sanções aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de gênero e raça em eleições, bem como nas prestações de contas anuais e eleitorais, ou seja, mais uma tentativa de anistiar as legendas que não cumpriram o que ordena a Constituição Federal. 

A anistia, no contexto delineado, que deveria servir como exceção e não como regra, tem servido para que os partidos políticos, desde os anos 90, possam descumprir determinações legais que tratam de ações afirmativas mediante uma busca desenfreada por brechas na lei que os protejam de qualquer tipo sanção, mantendo o status quo do privilégio branco e masculinista que age com retrocessos para barrar avanços alcançados por meio da luta de movimentos dos grupos sub-representados. 

Afora a extemporaneidade que é realizar o debate sobre anistia após as eleições terem acontecido visando aplicação de um “perdão” retroativo,  além de um debate feito sem discussão ampla com a sociedade civil ou mesmo com grande parte do parlamento, o novo texto trouxe uma série de incompreensões e incoerências, sem que estivessem claras as regras para o funcionamento dos dispositivos em vários casos como, por exemplo, quando trata sobre o repasse de Fundo Eleitoral e Fundo Partidário nos casos de eleições municipais com somente um turno.

O ponto ainda mais alarmante no novo texto é a diminuição de recursos para candidaturas negras, noticiado como grande avanço para a população negra, mas que efetivamente representa retrocesso. O texto aprovado especifica 30% para esses financiamentos, ignorando a ideia da proporcionalidade de incentivo a candidaturas negras com relação ao percentual total da população segundo o IBGE, obrigatoriedade já trazida pelo Tribunal Superior Eleitoral. Com isso, há uma efetiva redução dos recursos públicos para essas candidaturas.

A tentativa de redução de recursos para candidaturas negras ignora todos os debates e lutas sociais travadas ao longo dos últimos anos que asseguraram a ampliação da participação de mulheres e pessoas negras nos espaços de poder, sobretudo nas casas legislativas onde tramita a referida PEC. Como fruto desse grande processo político árduo, a Constituição Federal incorporou em seus textos dispositivos que determinavam a aplicação de recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política de grupos sub-representados, além de 30% do fundo eleitoral e parte do fundo partidário para uso em campanhas eleitorais.

Apesar de ter sido apresentado novo texto integralmente modificado, o parecer do relator deputado Antônio Carlos Rodrigues (PL – SP) suaviza termos que tratam da real anistia e tem como foco o reforço ao incentivo para candidaturas, com mudança da referência “raça” para “pessoas pretas e pardas”. O texto ainda deixa claro que fica a critério dos partidos a decisão sobre quais dessas candidaturas receberão os recursos, protege os partidos de cotas de financiamento para “minorias” caso não haja lei expressa aprovada, instituir o Refis, programa de recuperação para partidos que consigam honrar multas futuras, condições e facilitação de pagamento aos partidos em caso de multa, dispensa a emissão de recibo para doação em diversos casos, além de expandir a aplicação da lei a todas as instâncias federativas para beneficiar os partidos em todos os lugares e níveis.

Mesmo com essa intensa luta de movimentos sociais e a conquista de algumas garantias de representatividade, as pessoas negras ainda continuam sendo minoria nas casas legislativas e nos espaços de poder no geral, mesmo sendo maioria da população. A articulação por mais pessoas negras em espaços de poder não se findou com as garantias constitucionais e nem supriu a necessidade representativa, e por isso, em 2022, a Coalizão Negra por Direitos lançou, com apoio das organizações que a compõe, inclusive O INSTITUTO DE REFERÊNCIA NEGRA PEREGUM, a iniciativa Quilombo nos Parlamentos, com apoio de pré-candidaturas de pessoas ligadas ao movimento negro que estavam concorrendo para cargos no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas de todo território nacional. A ação tinha por objetivo reduzir o hiato de representatividade no poder legislativo e contribuir para um projeto de país alinhado à luta antirracista. Através dessa iniciativa, nove candidatos e candidatas federais negros e negras foram eleitos, dezenove candidatos e candidatas negros e negras ocuparam cadeiras em assembleias legislativas estaduais e mais noventa e sete se elegeram enquanto suplentes. 

Dado esse cenário de luta e ainda a visível falta de representatividade negra no parlamento, a PEC da Anistia se mostra um completo retrocesso frente às lutas já defrontadas pelo movimento negro brasileiro, que acresceu 8,94% no número de deputados e deputadas negros e negras eleitos na Câmara dos Deputados em 2022. O número é absurdamente menor do que ideal se levarmos em consideração que a maioria da população é negra e que ainda temos 72% de parlamentares brancos atuando na Câmara dos Deputados e votando matérias que interferem diretamente na vida de pessoas negras. Alguns desses parlamentares, inclusive, são os mesmos que se autodeclararam negros, fraudando de forma deliberada essa política de cotas, para abocanharem mais recursos para suas campanhas.

Vale dizer que entre os mais de 30 partidos instituídos, apenas o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados – PSTU cumpriu as determinações de distribuição de recursos. Anistiar os partidos que não agiram da mesma forma é enfraquecer a luta do movimento negro e a política de ações afirmativas que muitas vezes é ferozmente atacada pelos mesmos candidatos que a utilizaram para benefício próprio. 

Além de ser contrário ao princípio do interesse público, o texto da Proposta de Emenda à Constituição que sai da Câmara dos Deputados, torna inócuos dispositivos constantes na Constituição Federal, inutilizando as prestações de contas constantes no artigo 17 da Carta Magna e consolidando a total impunidade de partidos políticos que não cumpriram os dispositivos constantes no texto da Lei, permitindo, inclusive, que os partidos recebam verbas de pessoas jurídicas para pagamento de dívidas contraídas até agosto de 2015, ação vedada pela Lei n.º 13.615/2015.0

O financiamento público de campanhas eleitorais e a proibição de financiamento por pessoas jurídicas que estabelece a mitigação do abuso de poder econômico nas campanhas eleitorais e democratiza (com limites) o processo eleitoral é parte de uma importante trajetória de avanços que deve ser reconhecida e continuada. Porém, deixa a critério dos partidos políticos decidir sobre a aplicação de recursos, a partir de parâmetros não determinados. 

Não cabe aos partidos políticos decidirem apenas conforme os seus interesses como esses recursos serão utilizados, até porque, como parte de uma sociedade racista e patriarcal, os partidos refletem as mesmas práticas que garantem institucionalmente a manutenção do poder nas mãos masculinas da branquitude. 

Cabe lembrar ainda que a Lei 14.192/21 alterou a legislação eleitoral para “prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher” que também é uma marca de novos ares à realidade da política institucional brasileira.  Se renovando o compromisso do país em atingir a finalidade constitucional de promoção da igualdade sem distinção de raça ou gênero. É preciso, então, que estes objetivos políticos sejam parte das instituições do povo brasileiro, sem negociações grotescas, como transparece na referida Proposta. 

A PEC 09 tem potencialidade para minar frutos da luta de movimentos sociais, sobretudo do movimento negro, e provocar retrocessos irreparáveis para a sociedade no que trata da promoção a igualdade racial e de gênero nos espaços de poder político. Não é de interesse público a anistia de dívidas partidárias, e isso ficou explicitado na péssima recepção que a PEC teve desde o seu início. Todavia, é de grande interesse que as propostas elaboradas pelo Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas estejam comprometidas com justiça social, equidade racial e de gênero e com a construção de uma sociedade livre e igualitária, que combata a lógica racista e patriarcal que alimentam uma sociedade desigual e antidemocrática. 

O Brasil carrega dívidas imperdoáveis com a população negra e com as mulheres e nos parece que, neste momento, se há compromisso em assumir a melhor forma de funcionamento de um Estado Democrático de Direito, é imprescindível coragem política para emplacar alternativas de reparação correspondentes às demandas e reivindicações destes grupos. Recuar à promoção de políticas de igualdade racial e de gênero é um contrassenso à tendência doméstica e global de engajamento às agendas feministas e antirracistas praticadas em outras experiências democráticas que visam garantir a tríade das liberdades políticas – representatividade, igualdade e diversidade.

Nesse sentido, temos atuado contra a tentativa escusa de se contrariar a Constituição Federal através dessa Proposta de Emenda à Constituição que visa legitimar o desinvestimento de candidaturas de mulheres e pessoas negras desencorajando a participação política ampla que tenha de fato a cara do povo brasileiro e não a representação imagética de homens brancos, com mais idade, endinheirados, vestidos com ternos e gravatas de grife. Em nenhum caso as ações afirmativas podem ser meras ilusões utópicas, de um futuro não alcançável, por falta de compromisso daqueles que se encontram nos espaços de poder, sobretudo aqueles que dizem representar o povo dentro da própria “casa do povo”. 

Desta forma, solicitamos ao Senado Federal que proceda à rejeição do texto e, em última instância, que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva vete integralmente a proposta que prejudica frontalmente toda a população negra do país.