A tragédia deixou 65 mortos e cerca de 3 mil desabrigados
No dia 28 de fevereiro de 2023, o Litoral Norte de São Paulo foi atingido por fortes chuvas que provocaram deslizamentos de terra em diversos municípios, como São Sebastião, Guarujá e Ubatuba. Embora prevaleça uma narrativa que coloca o Estado na posição de “solucionador de problemas” causados por “forças da natureza”, a tragédia só foi possível graças a décadas de negligência quanto à situação habitacional da população negra e pobre. Porém, os impactos do racismo na vida das pessoas atingidas não se restringem ao passado e nem ao momento da tragédia: permanecem na forma como a política habitacional responde às suas necessidades.
Nesta análise, o Instituto de Referência Negra Peregum, por meio da área de Clima e Cidade, aponta como uma urbanização demarcada pela primazia dos interesses das classes altas e médias brancas constrói a geografia racial dessa tragédia, e como as políticas habitacionais em resposta, muitas vezes, perpetuam a situação de insegurança em que vive a população negra e trabalhadora nas periferias das nossas cidades.
Entenda o caso
A não implementação de políticas habitacionais e de adaptação em São Sebastião é um caso explícito de Racismo Ambiental, pois expõe desproporcionalmente pessoas negras a situações de risco para proteger privilégios e interesses. Em 2020, ao menos 400 moradias populares não foram construídas em Maresias, uma área valorizada de São Sebastião, devido à forte oposição feita por moradores de condomínios de luxo e hotéis que não queriam ter como vizinhos os trabalhadores locais.
Segundo o prefeito Felipe Augusto (PSDB), em entrevista ao UOL News, cerca de 500 moradores de classe média e alta de São Sebastião se reuniram com a prefeitura para barrar a construção das casas populares. A pressão popular levou ao cancelamento do projeto junto à Caixa Econômica Federal.
A questão só veio à tona depois da tragédia. As unidades habitacionais que deixaram de ser construídas beneficiariam aqueles que habitam áreas de risco. São os moradores dessas áreas, de maioria negra, que trabalham diariamente para viabilizar a economia do turismo da cidade de São Sebastião. Enquanto vivem inseguros, as partes da cidade mais adequadas à ocupação são ocupadas por casas de veraneio, e passam boa parte do ano vazias.
Nos dados dos mapas a seguir, especialistas da área de Clima e Cidade observaram como a produção e manutenção de um espaço segregado operacionalizam o Racismo Ambiental nos deslizamentos no Litoral Norte. É possível ver como a população branca mora mais próxima às áreas centrais e nas áreas mais planas, enquanto a população periférica mora mais distante e em áreas de encosta. Trata-se de um padrão construído e mantido por décadas. Esses mapas também foram divulgados em um artigo do livro “Racismo Ambiental e a Emergência Climática no Brasil” , lançado em 2023, pelo Instituto de Referência Negra Peregum.
Esse padrão de segregação espacial – demarcada por uma ocupação dos bairros com melhor qualidade urbana pela população branca e de classe média, enquanto os bairros mais distantes e com menos infraestrutura são ocupados pela população negra e mais pobre – não é particular de São Sebastião. Se repete, por exemplo, na cidade de São Paulo, e de diferentes formas por todos os espaços urbanos do país.
O mesmo padrão se reproduz em escalas mais locais, e é muito visível na Vila Sahy, que foi também o bairro mais atingido pelos deslizamentos. Os mapas a seguir mostram como as áreas menos adequadas à urbanização, incluindo áreas de risco, são ocupadas desproporcionalmente pela população negra, enquanto as áreas mais planas, próximas ao mar, são mais brancas. A forma de ocupação do espaço na Vila Sahy ilustra como o racismo produz uma situação absurda: a faixa mais distante das encostas, mais branca e mais turística, possui um terço da população da área de encosta, mas ocupa quase quatro vezes mais espaço.
Como resposta à tragédia, a CDHU e a Prefeitura de São Sebastião adotaram políticas de habitação por aluguel social e atendimento provisório e reassentamento definitivo. Não se apontou, porém, quais são os critérios para enquadramento, quantas são as famílias que não se enquadram neles e qual perfil racial das pessoas que não terão atendimento definitivo garantido. A falta de definição sobre o futuro e o sentimento de incerteza a que as pessoas removidas são sujeitas são apenas a perpetuação da insegurança habitacional a que historicamente foram expostas.
Algumas das famílias foram provisoriamente removidas para outros municípios para, então, serem removidas, mais uma vez, quando os apartamentos definitivos ficarem prontos. Não se pode naturalizar esse tipo de deslocamento que, muitas vezes, fragiliza as famílias econômica e socialmente. As vítimas não podem ser penalizadas pela falta de urgência com que o Estado lidou com sua situação previamente, ainda mais em uma situação absurda onde a negligência está diretamente vinculada à manutenção de privilégios da população branca e mais abastada.
Para reverter esse padrão de segregação, é fundamental investir em políticas públicas que garantam o acesso à moradia digna e priorizem a preservação e qualificação – urbana e ambiental – dos territórios onde mora a população negra e pobre. Em um cenário de agravamento de fenômenos meteorológicos extremos, o desenho de políticas habitacionais deve ser encarado como parte fundamental de uma política de adaptação antirracista às mudanças climáticas. Garantir o Direito à Moradia, previsto na Constituição, é também garantir que nenhuma família precisará se expor a condições de vulnerabilidade ambiental por falta de recursos.
O Instituto de Referência Negra Peregum luta por justiça racial e por cidades antirracistas e reconhece o racismo ambiental manifesto na institucionalidade e na mobilização civil que impediu que famílias que viviam em regiões vulnerabilizadas acessassem seus direitos básicos.
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Nota metodológica
Os mapas foram produzidos com dados do Censo IBGE 2010 e do Instituto Geológico da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
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Texto| Mayara Nunes