Especialistas de Clima e Cidade analisam os fenômenos por detrás das ondas de calor extremo e como isso afeta a população negra e periférica
Em setembro de 2023, entre os últimos dias do inverno e a chegada da primavera, uma primeira onda de calor atingiu as cinco regiões do país e elevou os termômetros. Como visto, o país registrou recordes de temperatura e, em São Paulo, a população sentiu a combinação entre calor extremo e baixa umidade.
Os indicadores meteorológicos e o contexto global de emergência climática nos indicam que esses eventos serão cada vez mais constantes nas próximas décadas. Inclusive, estamos enfrentando uma nova onda nessa semana!
A equipe de Clima e Cidade do Instituto de Referência Negra Peregum observou como os impactos e efeitos de um evento climático, como a onda provocada pelo fenômeno “El Niño”, somam-se às desigualdades sociais e territoriais. Um trabalho realizado a partir de dados coletados das estações meteorológicas do Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas da Prefeitura de São Paulo.
A pesquisa feita entre os dias 18 e 27 de setembro identificou alguns aspectos importantes desse fenômeno. Nos dias em que o calor atingiu as temperaturas mais elevadas, os picos oscilaram entre às 12h e às 16h, e a temperatura recorde foi registrada no dia 24 de setembro: 37,3º em Perus, às 13h, e em São Miguel Paulista, às 16h. Já na pior noite, entre os dias 26 e 27 de setembro – de terça para quarta-feira – quem esteve na Sé enfrentou mais de 30º às 10h da noite, com umidade do ar próxima a 20%.
O gráfico demonstra uma variação do calor no território, mas as explicações demandam considerar muitas variáveis. Por exemplo, as maiores temperaturas registradas durante o dia se concentram no centro da capital, nos distritos Sé e Mooca, e em distritos periféricos com alta densidade demográfica, como é o caso de São Miguel Paulista e Perus ou, ainda, em distritos mais arborizados, onde a população é quase exclusivamente branca, como Pinheiros e Butantã. O que, aparentemente, poderia levar a uma ideia de indistinção da onda de calor entre esses territórios.
Porém, quando olhamos para a onda de calor durante a noite, saltam aos olhos as altíssimas temperaturas registradas na Sé e em São Miguel Paulista que, além da onda de calor, enfrentam a força de outros fenômenos climáticos que se articulam com dinâmicas de ordem social, política e econômica.
Sobre o clima, o fato é que muitas edificações, concreto e asfalto geram um fenômeno conhecido como ilha de calor. O calor liberado durante o dia é retido por esses materiais, que não permitem a sua dissipação, o que eleva as temperaturas durante a noite e dificulta a circulação de ar.
Outro aspecto a ser considerado é a alta concentração de poluentes causada pelo volume de carros, fator que agrava a formação de ilhas de calor na capital. Durante a análise, foi observado que a estação meteorológica da Sé, na capital, apresentava consistentemente as maiores temperaturas e as piores condições de umidade do ar na cidade, uma consequência direta desses aspectos.
Também foi analisado que algumas das piores situações relacionadas às altas temperaturas foram vivenciadas nos locais de encontro dessa onda com os grandes bolsões formados pelas ilhas de calor da cidade que, não por coincidência, são locais de residência da população negra e periférica ou na região central, o que eleva os alertas de atenção para a população em situação de rua.
Os padrões de mobilidade na cidade também definem como cada um vivencia esses impactos: pessoas que moram nas periferias e trabalham na região central acabam sofrendo os efeitos da concentração de emissões automobilísticas ao longo do dia.
Quando verificadas pela perspectiva do território, as variações no gráfico também refletem o papel da infraestrutura de bairros na região de Pinheiros ou do Butantã. Se a população que lá reside enfrenta um calor mais forte ao longo do dia, por outro lado, vivencia noites com temperaturas um pouco mais amenas, induzidas por características urbanas, como maior presença de árvores nas ruas e calçadas mais largas.
Os especialistas de Clima e Cidade de Peregum têm pautado a sociedade civil e o poder público na formação de políticas que contenham medidas efetivas de adaptação para responder aos efeitos dos eventos climáticos extremos sobre a vida das populações urbanas, sobretudo da população negra e periférica, que se concentra entre os grupos mais negligenciados pelas políticas de Estado.
É nesse sentido que Peregum vem buscando trazer uma análise territorializada dos dados, pois o levantamento de dados racializados pode apontar para soluções mais efetivas para os territórios que sofrem sem infraestrutura adequada, por negligência e racismo ambiental.
Territorializar dados climáticos demanda explicações mais complexas no âmbito das ciências naturais e exige a incorporação de aspectos de ordem social, política e econômica que dizem respeito a desigualdades raciais e de renda que fazem com que um mesmo fenômeno seja experienciado de formas muito diferentes por quem habita a cidade.
Essa análise foi acompanhada pela geógrafa, mestre em geografia humana e doutoranda em planejamento, Fernanda Pinheiro da Silva, e pelo analista de dados, Pedro Rezende Mendonça, da equipe de Clima e Cidade do Instituto de Referência Negra Peregum.