Encontro reuniu uma equipe técnica de pensadores da educação de todo o país para debater a construção de um projeto nacional de educação antirracista
Nos dias 16 e 17 de agosto, o Instituto de Referência Negra Peregum, em parceria com a UNEafro Brasil, reuniu um time de pessoas negras comprometidas com a agenda pela educação antirracista, de diferentes estados do país, com trajetórias de pesquisa, trabalho de campo e luta por equidade racial na educação, em um encontro que debateu o direito à educação da população negra e o PL n.º 2614/2024, que define o Plano Nacional de Educação (2024-2034).
Um momento simbólico e de extrema relevância para os rumos da educação, principalmente, no que afeta a juventude negra brasileira, em que a evasão escolar tem representado um dos maiores entraves para a garantia do direito à educação. De acordo com o levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), em 2023, das nove milhões de pessoas que não completaram o ensino médio, 71,6% eram pretas e pardas.
No dia 16 de agosto, a primeira parte do encontro aconteceu no Auditório da Ação Educativa, em São Paulo, e contou com a participação de Lucimar Dias, professora da Universidade Federal do Paraná; Thais Sena, representando a professora Ellen Lima Souza, da Universidade Federal de São Paulo; Eduardo Januário, professor da FE-USP; Suelaine Carneiro, do Instituto Geledés; Luciane dos Santos, representando o professor Valter Silvério, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Laura Rocha, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), representando o professor Sidnei, coordenador e professor do Instituto Ilê Ará SP; e Ana Cristina Cruz, também da UFSCar.
A abertura da mesa contou com o depoimento da professora Lucimar Dias, que narrou um pouco da sua experiência como Diretora de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar Quilombola/SECADI/MEC e falou sobre o desafio de construir o Plano Nacional de Educação a partir de uma centralidade de raça para todas as áreas, algo inédito dentro do ministério. “Discutir equidade não necessariamente inclui o debate racial, mas nós vamos fazer incluir, essa é a nossa tarefa”, conta a professora.
Lucimar explica que o projeto de lei atual é uma síntese de muitos meses de diálogos e também de uma adaptação de metodologias. “O PL acaba sendo uma síntese dessa conjuntura política que a gente vive e dos nossos anseios porque é uma disputa de concepção que está posta no plano nacional, como está posta em qualquer legislação”, pontua a professora.
Lucimar argumenta sobre a dificuldade que foi produzir um Novo Plano Nacional de Educação, de forma emergencial, que garantisse a Política Nacional de Educação. A formulação como uma demanda urgente se deu por conta da lacuna deixada pela gestão anterior à do presidente Lula, que deveria ter cumprido a função institucional da produção de um novo plano e não cumpriu.
“Tivemos que fazer apressadamente para garantir a Política Nacional, porque é fundamental que a gente tenha um Plano Nacional de Educação. Ele orienta toda a política e vai orientar também as políticas municipais e estaduais. Para nós, era muito caro que tivéssemos um plano que representasse os anseios do movimento negro porque faz tempo que a gente sabe e diz o que a gente quer para a educação, mas botar isso na lei é outra história”, conclui Lucimar Dias.
Meninos negros na perspectiva de uma educação antirracista
A educação ocupa um lugar estratégico entre as pautas dos movimentos negros, tanto na mobilização social quanto no papel que os processos educacionais exercem na construção de identidades. Durante o encontro, foi levantado um ponto de reflexão a respeito da formação dos meninos negros na educação básica e na sua inclusão, pertencimento e identificação com os espaços de ensino formal para que a lamentável realidade da evasão e do abandono intelectual não se perpetue.
Thais Sena, do Grupo de Pesquisa Laroyê, da Universidade Federal de São Paulo, menciona a evasão dos meninos negros no ensino básico, considerando, consequentemente, a menor porcentagem desse grupo no ensino superior e a importância de uma análise sobre esse grupo ao elaborar o Novo Plano Nacional. “É importante que a gente pense nessa presença também no Plano Nacional de Educação, porque se a gente não fala sobre essas especificidades das infâncias negras masculinas, se não existe esse debate, não pode haver políticas públicas”, explica a pesquisadora.
O professor Eduardo Januário, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, relembra sua infância na periferia e a realidade das escolas públicas brasileiras que pouco mudaram nas últimas décadas. “Eu sou um homem negro da periferia, sempre estudei em escola pública, e quem está lá na quebrada sabe o que é a escola pública”, afirma.
Na sequência, o professor cita um pequeno trecho de “Negro Drama”, dos Racionais MC’s, e disserta sobre o distanciamento de educadores e diretrizes de educação para com as corporeidades negras e até o repúdio para com seus modos de ser, existir e produzir pensamentos que atravessam gerações: “Problemas com escola eu tenho mil, mil fitas, inacreditável, mas seu filho nos imita. No meio de vocês, somos mais espertos, ginga e fala gíria, gíria não, dialeto”.
“É essa escola que ainda hoje persiste, escola que nossa meninada preta vai e não consegue se identificar, os novos sujeitos de direitos, que é assim que a gente chama, aqueles que adentraram os bancos escolares a partir da constituição de 1988 não tiveram as escolas modificadas, os professores ainda são formados naquela argumentação de falar sobre a Europa como parte da formação brasileira, e não da África”, explica o professor.
Eduardo Januário ainda pontua que grande parte dos profissionais da educação básica não teve uma formação para a Educação das Relações Étnico-Raciais, o que dificulta a mediação. Ele também problematiza a universalização do ensino e a ausência de políticas adequadas que garantam a formação dos professores e um maior aproveitamento dos estudantes. “Um chamamento aqui para nós, que pensamos em disputar a palavra “equidade” é que equidade sem discussão de raça não representa equidade. Não dá para discutir equidade com política universal, a única proposta de equidade é com política afirmativa”, conclui Januário.
Suelaine Carneiro, coordenadora do programa de educação do Geledés – Instituto da Mulher Negra, conclui a primeira parte do encontro, citando algumas pesquisas, entre elas, o levantamento “Percepções sobre o racismo no Brasil”, feito pelo Instituto de Referência Negra Peregum e pelo Projeto Seta, em que 69% das pessoas entrevistadas consideram que o tema mais importante a ser estudado dentro das escolas é o racismo.
“Quando a gente pensa em todo o relatório que Peregum fez sobre a percepção do racismo, somos uma sociedade racista. Quando a gente pensa sobre as outras pesquisas, sobre a Lei 10.639, sobre as condições de infraestrutura levantadas pelo Observatório da Branquitude, em que as piores escolas são as escolas negras. Também a pesquisa sobre conectividade, nossas escolas não têm conectividade, não têm equipamentos, então, o desafio é gigantesco num momento em que o fascismo está dentro das nossas escolas, num momento em que o estado de São Paulo e o município não implementam absolutamente nada que espelha o federal”, explica Suelaine.
Para a coordenadora do Geledés, a aprovação do Projeto de Lei representará uma grande disputa para os movimentos negros. “As escolas de São Paulo estão sob a ação cotidiana de forçar para que as escolas estaduais sejam a comunidade que aceite a militarização. Devastador para quem está na escola, para quem defende a escola, para quem defende a autonomia dos estudantes, e isso exige articulação, muita vigilância, defesa e, principalmente, recursos, porque o fosso em que a população negra está no campo educacional é muito profundo. A gente viu os últimos índices que saíram agora da nossa avaliação que não tem uma política de avaliação comprometida, não só com a qualidade, mas também com a autonomia”, pontua.
O encontro teve continuidade, no dia 17 de agosto, reservado apenas para a equipe técnica, que através das análises dos grupos de trabalho formulou um documento que deverá ser encaminhado ao Ministério da Educação ainda este ano. O documento está em processo de elaboração e circulará pelos movimentos negros em debates e outros processos de escuta junto à sociedade civil até finalmente ser finalizado e entregue em novembro.
A cobertura do encontro na integra você acompanha no canal do youtube da TV UNEafro. Quer saber tudo o que rolou? Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=9ZyXmfL8-gs&t=3325s
texto| Mayara Nunes
Imagens| Guilherme Teixeira e Sofia Costa