Evento de lançamento discutiu a privação sistemática de alimentos saudáveis em territórios negros e o racismo alimentar
O Instituto de Referência Negra Peregum e a UNEafro Brasil lançaram, na última quinta-feira, dia 16 de maio, o livro Agroecologia e Educação Popular: Ações e Reflexões de Enfrentamento ao Racismo. Fruto de um conjunto de lives realizadas em 2021, no decorrer do projeto Juventude Negra Viva – Educação Popular e Agroecologia, da UNEafro Brasil. A publicação contou com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
O lançamento aconteceu na sede da Fundação Rosa Luxemburgo, durante o evento intitulado “O que a agroecologia e a alimentação saudável têm a ver com o combate ao racismo ambiental?”.
O livro tem distribuição gratuita e está disponível no site do Instituto. A Oralituras foi a editora responsável pela obra.
Sobre o livro
Na ocasião, especialistas de diversas áreas compartilharam suas experiências e conhecimentos sobre possíveis ações que partam da agroecologia como um movimento que educa e contribui com a conexão com a terra, com os territórios e com a ancestralidade, revelando outros modos possíveis de produzir e distribuir alimentos fundamentados na coletividade e na sustentabilidade socioambiental.
Os capítulos estão distribuídos de acordo com as temáticas das lives, criando um arranjo de um rico registro das discussões e experiências compartilhadas, contribuindo significativamente para o aprimoramento de nossa compreensão sobre como construir comunidades mais saudáveis, resilientes e sustentáveis, o que só é possível com a superação e o combate ao racismo.
Durante o evento, também foram apresentados trechos da websérie Racismo Ambiental: Terra, territórios e tecnologias, fruto da mesma parceira. Em três episódios, a produção aborda as consequências da crise climática sobre um contexto de insegurança alimentar e como essas já são realidade das populações brasileiras.
A mesa
Mediada por Christiane Gomes, diretora de Projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, a mesa contou com a presença de Adriana Rodrigues e Aline Guarizo, coordenadoras de projetos no Instituto de Referência Negra Peregum; e Carla Bueno Chahin, integrante do setor de Produção do MST e da Rede de Cozinhas Solidárias em São Paulo.
O bate-papo se iniciou com a contextualização da coordenadora do projeto de agroecologia do Instituto de Referência Negra Peregum, Aline Guarizo, que compartilhou com o público a concepção do projeto que deu origem ao livro.
Aline conta que, em meados de 2021, durante a crise sanitária, econômica e social provocada pela pandemia de covid-19, a UNEafro Brasil, junto com outras organizações do movimento negro que compõem a Coalizão Negra Por Direitos, fomentaram a campanha “Tem Gente com Fome”, e distribuíram milhares de cestas de alimentos no território nacional. As cestas eram acompanhadas de alguns cultivos da agricultura familiar, foi então que surgiu a ideia da construção de uma plantação agroecológica nos territórios que sediaram os cursinhos populares da UNEafro.
A coordenadora do projeto de agroecologia explica que, a partir dali, foi dado início à movimentação para o cultivo de três territórios de hortas urbanas agroecológicas, utilizando o plantio e a produção de alimentos saudáveis como uma forma de atrair a juventude para debater questões políticas e sociais profundas em torno do direito à terra, racismo ambiental e soberania alimentar.
“Eu acho que, da minha geração pra frente, existe uma desconexão com o ato de plantar, muito pelo ambiente que a gente vive, que são as periferias urbanas. Nós utilizamos do ato de plantar para discutir questões que tem a ver com a realidade das pessoas nas comunidades, questões socioambientais, do racismo ambiental. O trabalho de hortas, que acontece em alguns territórios, tem grandes desafios e compartilha dos mesmos desafios que existem no campo porque, nas periferias, nós não temos espaço, não temos terra, não temos acesso à terra”, explica Aline Guarizo.
Na sequência, a historiadora, doutoranda pelo Instituto de Geociências da Unicamp e coordenadora de Bolsas no Programa Esperança Garcia, do Instituto de Referência Negra Peregum, Adriana Rodrigues, discorreu sobre como os sistemas alimentares se tornaram a maior causa de destruição do meio ambiente e como foi a experiência de estar em contato com o sistema agrícola tradicional quilombola e ver de perto um manejo que é ancestral e agroecológico antes mesmo de existir a nomenclatura.
“Eu gostei muito quando a Aline falou “agroecologia antirracista” porque não se fala dela como uma ciência, desconsiderando que os povos e comunidades tradicionais já a praticam, a agroecologia já existe como principio e prática”, afirma Adriana.
Adriana conta que começou sua pesquisa a partir do desmantelamento das políticas públicas alimentares durante o período da pandemia, do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e da Política de Aquisição de Alimentos (PAA).
É importante salientar que o governo Bolsonaro, durante a gestão, desmantelou completamente as políticas públicas alimentares, incluindo o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), que foi fechado durante a pandemia e, assim sendo, parou de produzir dados sobre a insegurança alimentar no país. A Cooperquivale, Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira pesquisada por Adriana, quase fechou as portas em decorrência da inoperância do Estado.
“O que eu pude identificar da zona rural para a produção de alimentos: vi mãos pretas produzindo e, do outro lado, eu via bocas pretas que não comiam, não se alimentavam desse alimento que é agroecológico, natural, livre de venenos. Então, existia ali, durante a pandemia, uma falta para a saída e comercialização desses alimentos, e existia uma outra ponta que a pandemia escancarou, a fome na periferia e a fome na maioria da população negra. Era uma balança que não fechava”, expõe a pesquisadora.
Embora a comunicação massiva e hegemônica afirme constantemente a narrativa de que o Agro é o produtor mais rico em alimentos e que é ele que fornece abundância alimentar no Brasil, em contrapartida, a agricultura familiar segue sendo a responsável por 70% dos alimentos que consumimos e por gerar emprego e renda para milhões de pessoas.
A mesma agricultura tradicional e familiar que foi tão ameaçada pelo neoliberalismo predatório e excludente nas últimas décadas. “A maioria dos agricultores brasileiros são negros, são 66%, segundo o último CENSO, em 2022, então, são mãos negras que nos alimentam e, durante a pandemia, tanto essa população do meio rural começou a vivenciar uma situação de insegurança alimentar quanto, na outra ponta, a periferia, onde mais de 65% das pessoas que viviam algum tipo de insegurança alimentar eram negras”, afirma Adriana.
A expansão da soja, expressão máxima do agro, representa uma série de desmatamentos, seja pela conversão direta de áreas florestais em plantações, seja pelo deslocamento das outras frentes de desmatamento (pecuária, extração de madeira, grilagem de terras). Embora o agronegócio seja enaltecido por sua contribuição para a balança comercial, o preço ambiental e de saúde que pagamos é altíssimo.
Segundo Carla Bueno Chahin, integrante do setor de Produção do MST e da Rede de Cozinhas Solidárias em São Paulo, que esteve presente durante o debate. “A agroecologia é uma matriz tecnológica que contrapõe o modelo hegemônico de produção de “alimentos”, contrapõe o modelo de produção colocado hoje na sociedade hegemônica que é o Agro, é muito importante observar como o Agro se coloca e entender a agroecologia como um modelo de produz, uma matriz tecnológica que rompe com esse modelo do agronegócio. E quando eu digo rompe, é por que rompe mesmo, não são modelos conciliáveis, esse modelo do agronegócio atrasado baseado em latifúndio, em veneno e baseado em trabalho análogo ao trabalho escravo é o que a gente combate com a agroecologia, e é um combate cotidiano”, comenta Carla.
Além do Agro que não é pop, há também a indústria de alimentos ultraprocessados que é isenta do imposto seletivo (IS), contribuindo para que essa alimentação se torne, a médio e longo prazo, a base alimentar dos brasileiros, especialmente da população mais pobre, por serem alimentos de baixo custo, mas que oferecem sérios riscos à saúde geral da população e escancaram a falta de investimento público e consolidação de políticas que fortaleçam a produção de alimentos orgânicos e agroecológicos.
Adriana Rodrigues concluiu mencionando uma fala da pesquisadora Denize Ornelas, que constatou que a população negra morre estatisticamente mais de ataques cardíacos por hipertensão e por doenças crônicas em decorrência da má alimentação do que por violência por armas de fogo. “Isso não significa que a gente não deva discutir o genocídio da população negra, homens negros e meninos negros sendo mortos, mas a gente precisa ter um olhar para esse tema, que é o racismo alimentar, porque ele é um genocídio em curso muito potente”, concluiu.
Texto| Mayara Nunes
Imagem| Alice Carvalho